A Folha de S. Paulo publicou em sua edição de ontem, 11 de outubro, uma
matéria bastante interessante sobre as pesquisas realizadas pela
Universidade de Washington em Seattle, que verificaram a existência de"instinto moral" em bebês de 15
meses de idade. A notícia está provocando profundos debates no meio
acadêmico, especialmente entre os militantes ateístas, que fogem do
instinto moral como o diabo da cruz. O próprio editor de ciência da
Folha, Reinaldo José Lopes, responsável pela reportagem publicada ontem,
comenta - ironicamente - na mesma edição que os bebês já viriam
"programados de fábrica", o que, ainda que de maneira enviesada,
comprovaria a doutrina bíblica do pecado original.
Em sua coluna na
Folha de S. Paulo de hoje (12/12/11), Helio Schwartsman continua repercutindo o
assunto, ressaltando que - coincidentemente - o militante ateísta Sam
Harris já está disparando seus dardos inflamáveis contra as conclusões
levantadas pelos cientistas americanos, algo que já era esperado, pois
uma vez comprovada a existência do instinto moral em bebês, os ateus
perdem parte essencial de seu discurso, que é a alegação de que tanto o
comportamento moral como o religioso são aprendidos e incutidos
socialmente. A pregação do neoateísmo é eminentemente utilitária, a
grosso modo na base do "funciona / não funciona", já que não tem nada a
propor e seu único objetivo é, por assim dizer, "desconstruir a
religião" sem dizer o que quer edificar no seu lugar. Nada mais
nihilista. De qualquer maneira, qualquer pessoa que já teve a
experiência de cuidar de bebês e observar o seu comportamento e
desenvolvimento, constatou que desde pequeninos (e obviamente imunes a
qualquer controle social eficaz) eles já têm uma mínima noção do que é
certo ou errado de acordo com o seu senso de justiça. As matérias da
Folha estão transcritas abaixo, e valem a pena ser lidas:
Bebês de 15 meses têm senso de justiça, mostra estudo
REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR DE CIÊNCIA E SAÚDE
Pais que sofrem para impedir que seu bebê arranque brinquedos das mãos
dos amiguinhos podem não acreditar, mas crianças de apenas 15 meses já
parecem ter um senso rudimentar de justiça, afirma um novo estudo.
Experimentos feitos com cerca de 50 crianças na Universidade de
Washington, em Seattle (Costa Oeste dos EUA), mostraram que os pequenos
ficam "chocados" quando presenciam uma divisão desigual de guloseimas.
E, apesar do berreiro que às vezes acontece quando bebês disputam
brinquedos, as crianças do estudo, em quase dois terços dos testes,
topavam dividir os seus com adultos desconhecidos.
Publicada na revista científica de acesso livre "PLoS One",
a pesquisa se junta a uma série de trabalhos recentes que indicam a
existência de um instinto moral aguçado nos filhotes da nossa espécie.
PRECOCE
Aliás, o estudo atual é o que revela evidências de comportamento "ético"
mais cedo no desenvolvimento humano --os trabalhos anteriores só tinham
demonstrado isso em meninos e meninas de dois anos de idade.
Um resumo do design experimental usado pelos psicólogos Marco Schmidt e
Jessica Sommerville, autores do estudo, pode ser visto no infográfico.
Sempre no colo de um dos pais, para ficarem relaxados, os bebês primeiro
assistiam a vídeos que mostravam a divisão igualitária ou desigual de
comida (biscoitos ou leite) entre dois adultos.
Como os talentos linguísticos das crianças dessa idade ainda são
limitados, os psicólogos usavam algo mais simples para saber o que os
bebês tinham achado dos vídeos: o tempo que eles gastavam olhando para a
tela.
Trata-se de uma ferramenta já estabelecida em outros estudos do tipo. Em
geral, quanto mais uma situação surpreende os bebês, mais tempo eles
ficam olhando para a cena. E, nesse caso, em média, a cena em que a
divisão é desigual surpreendeu bem mais os pequenos.
Depois, os mesmos bebês podiam escolher entre dois brinquedos, ambos
ofertados por um pesquisador que eles já conheciam. O cientista esperava
a criança escolher seu brinquedo favorito e, depois, deixava os dois
com ela.
Entrava então em cena um outro pesquisador, que a criança ainda não
tinha visto. O sujeito perguntava: "Posso pegar um [dos brinquedos]?".
A maioria dos bebês dava um dos brinquedos para a pessoa, e um terço deles emprestava até o brinquedo considerado o preferido.
Aliás, havia uma correlação: as crianças mais "chocadas" com a divisão
injusta do leite ou dos biscoitos eram justamente as que tinham mais
tendência a compartilhar seus brinquedos com os estranhos, sugerindo que
tendências parecidas explicam os comportamentos.
Cérebro infantil já teria módulos 'de fábrica'
DO EDITOR DE CIÊNCIA E SAÚDE
A investigação do senso moral aparentemente inato de bebês e crianças
pequenas floresceu nos últimos anos, com uma série de descobertas
intrigantes.
Bebês de dois a três anos, por exemplo, tendem a preferir personagens de
desenho animado que ajudam os outros aos personagens que estorvam os
demais, mesmo quando esses seres são simples formas geométricas, como
quadrados, retângulos e círculos. As crianças também parecem vir "de
fábrica" com algum conhecimento básico sobre física: olham mais tempo,
surpresas, para vídeos em que objetos ficam suspensos no ar quando
deveriam cair, por exemplo.
A explicação mais óbvia (e provavelmente mais sólida) para essas
capacidades é evolutiva: seria custoso demais para o cérebro dos
pequenos aprender tudo do zero, especialmente as regras básicas sobre o
funcionamento do mundo e da vida social humana. Nascer com instintos
morais e intuições sobre física facilitariam o aprendizado de
informações mais complexas e ajudariam as crianças a sobreviver. (RJL)
Nova ciência da moral
HÉLIO SCHWARTSMAN
SÃO PAULO - A notícia publicada ontem em Ciência de que bebês de 15
meses já dispõem de um senso de justiça rudimentar acrescenta mais um
tijolinho à disposição dos pesquisadores que tentam fundar a nova
ciência da moral.
Uma das ideias centrais dessa protodisciplina é a de que a faculdade
moral é um instinto. A analogia que cabe é com a teoria da gramática
universal de Noam Chomsky. Da mesma forma que nossos cérebros são
equipados com um hardware linguístico, que nos habilita a aprender
praticamente por osmose o idioma ao qual somos expostos na primeira
infância, nossa cachola também já viria com uma moral de fábrica.
Não se trata, por certo, de um código penal, uma lista pronta e acabada
de todas as ofensas possíveis e as respectivas punições, mas de um
conjunto de princípios elementares, comuns a toda a humanidade, como as
noções de justiça, pureza e autoridade. Elas se combinariam umas com as
outras e também com elementos culturais para formar toda a exuberância
de padrões morais observáveis nos mais diversos grupos.
A maioria dos estudiosos da moral para por aqui -o que já é um projeto
para gerações. A exceção é o neurocientista Sam Harris, que, em "The
Moral Landscape" (a paisagem da moralidade), sustenta que é possível, ao
menos em princípio, usar a ciência para decidir quais valores morais
são corretos e quais são errados.
O critério de verdade escolhido por Harris, na melhor tradição
utilitarista, é o bem-estar. Assim, práticas morais que contribuem para
aumentar a felicidade das pessoas, como tratar bem o próximo, são
validadas pela nova ciência. Já hábitos que fazem crescer a miséria
humana, como castigos corporais, tornam-se uma chaga a eliminar.
Com esse engenhoso mecanismo, Harris consegue, de um só golpe, atacar
seus adversários à esquerda (multiculturalismo, relativismo) e à direita
(religião, tradicionalismo).
Clipping e comentários do Hélio no Contorno da Sombra
Vi no Genizah
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